A magia da escrita, para mim, é a liberdade que me dá de mudar de registo e de estilo em cada história. Algumas vezes, solto a minha imaginação e escrevo contos fantasiosos com personagens fantásticas, outras, inspiro-me em coisas, muitas absolutamente banais, que me acontecem no quotidiano. A escrita permite-me expressar os meus sentimentos e pensamentos, aproximar o real da fantasia…
Título: Consoada imprevista
Era véspera de Natal e as pesadas e lúgubres nuvens que escureciam os céus de Ponta Delgada anunciavam o recomeço iminente da chuva. Fortemente agasalhada, Diana estugava o passo, procurando entrar o mais depressa possível no hospital. O seu humor estava tão sombrio quanto o estado do tempo. Iria iniciar o seu turno daí a poucos minutos, mas não se conformava com facto de não poder ir visitar o pai ao continente na quadra natalícia, uma vez que, por infortúnio do destino, fora uma das enfermeiras designadas, em cima da hora, para ficar de prevenção nas urgências, durante a noite de Consoada.
Sentindo-se uma pobre injustiçada, lamentou a sua sorte, lançando o olhar para o céu pintado de cinzento:
– Só a mim é que acontecem estas coisas! Comprei o bilhete de avião com semanas de antecedência… Para quê? Para nada! E já não bastava não poder ir passar a noite de Natal a casa e ainda tenho de ficar aqui a socorrer gentinha que não sabe controlar excessos alimentares! Que raio de sorte!
Já no vestiário, Diana tentou impedir-se de recordar os episódios do último ano, mas em vão… tudo voltava à sua mente com contornos angustiantemente nítidos: a forma como a mãe tinha falecido subitamente com um ataque cardíaco fulminante, o desespero do pai que nem com toda a sua experiência a tinha conseguido salvar, a sua partida para aquele território insular, por falta de emprego no continente… A jovem enfermeira deixou-se escorregar para o chão, chorando copiosamente: como é que não iria estar com o pai naquela noite tão importante, o primeiro Natal de ambos sem a mãe?
Enxugou as lágrimas e, já mais calma, fardou-se rapidamente e saiu para o corredor, preparando-se para a longa noite nas urgências que sabia não poder evitar. Cumprimentou distraidamente as poucas colegas que também se encontravam de serviço. Reparou que, embora também elas fossem passar a noite longe das suas famílias, ostentavam um sorriso nos lábios. Todas haviam trazido um doce natalício para confraternizarem e, naquela altura, tagarelavam freneticamente sobre a notícia do dia no hospital que agora também passava na televisão: estava a caminho dos Açores um Falcon 50 da Força Aérea, medicalizado, para ir buscar um recém-nascido que apresentava uma malformação muito grave no coração, para ser operado de urgência em Lisboa.
A noite foi passando e, felizmente, não surgiram situações complicadas, apenas os inevitáveis casos de pequenos golpes nos dedos na sequência da intensa atividade culinária que invadia todos os lares nesta quadra, os habituais episódios de gripe e os previsíveis problemas de indigestão motivados pelos desvarios nutricionais da época. Aos poucos, a irritação e tristeza de Diana foram sendo amenizadas pelo ambiente de amizade e companheirismo e a jovem começou a deixar-se contagiar pela envolvência festiva. Assim, mesmo estando longe das suas famílias, conseguiram criar as condições mínimas para celebrarem o Natal de uma forma especial à sua maneira e apesar da circunstância atípica de se encontrarem nas urgências de um hospital.
Subitamente, tocou o telefone da sala de enfermagem e Mariana, uma das colegas, atendeu de imediato. Ao desligar o telefone, exclamou com ar apreensivo:
– Meninas, afinal a noite vai ser bem mais atribulada do que esperávamos! Era o Dr. André Castro do serviço de Neonatologia… a situação do menino que nasceu ao final da tarde agravou-se e ele tem de ser operado imediatamente! Querem que preparemos tudo para a cirurgia ser realizada cá, pois a criança não aguentará a viagem até ao continente!
Por um segundo, todas ficaram paralisadas, entreolhando-se com indisfarçável receio, mas restabeleceram-se num instante e logo deram início às tarefas que respetivamente lhes competiam.
Enquanto se dirigiam para o bloco operatório, Mariana indagou:
– Diana, disse-te que o Dr. Castro pediu que te preparasses para ser a enfermeira instrumentista da cirurgia? – e, sem esperar pela resposta, entrou apressada na sala de esterilização.
Enquanto aguardava com ansiedade pelo início da cirurgia, Diana notou que alguns colegas ligavam para os entes queridos a avisar que possivelmente não os poderiam contactar à meia-noite, pois surgira uma emergência e decidiu seguir-lhes o exemplo. Desconsolada, constatou que o telefone do pai se encontrava indisponível. Enquanto desinfetava novamente as mãos e se preparava para entrar no bloco operatório, pensava de si para si: – O que andará ele a fazer a esta hora da noite para o telemóvel não ter rede…?
Mas não teve tempo para mais cogitações, pois a criança acabara de entrar na sala de operações onde já estavam o Dr. Castro, que iria ser o ajudante na cirurgia e o Dr. Melo, o médico-anestesista mais competente e humano que alguma vez conhecera. Por fim, chegou o médico-cirurgião, também já completamente fardado.
A intervenção cirúrgica iniciou-se sem demora. O procedimento era extremamente delicado e de alto risco. A tensão na sala de operações era quase palpável, dado que ninguém se conseguia abstrair do facto de o paciente ser um recém-nascido. As testas enrugadas dos médicos espelhavam bem a preocupação latente.
Diana observava a destreza do cirurgião cardiotorácico que manuseava o bisturi com absoluta concentração, transmitindo-lhe uma sensação de confiança tal que ela não conseguia explicar. Bem sabia que, nestes casos, o equilíbrio entre a vida e a morte era muito ténue e que num bloco operatório não havia margem para hesitações. Um pequeno deslize podia ter consequências nefastas.
Começava a sentir uma ponta de remorso pelo seu egoísmo. Afinal, estava tão centrada nos seus queixumes que quase se esquecera da razão pela qual escolhera aquela profissão e do juramento de Florence Nightingale que fizera quando a abraçara: prometera dedicar a sua vida profissional ao serviço da humanidade e fazer de tudo para que os seus pacientes recebessem o melhor tratamento, e agora tinha uma oportunidade de se redimir.
À medida que o tempo avançava, o nervosismo da enfermeira foi dando lugar a uma vontade inabalável de ajudar. Acabou por impressionar todos no bloco operatório com a sua força de vontade e profissionalismo.
A cirurgia foi concluída com sucesso e o Dr. Castro precipitou-se para a sala de espera para dar as boas notícias aos compreensivelmente ansiosos e aflitos pais do bebé, que, entretanto, seguira para o recobro. Por sua vez, Diana arrumava zelosamente os instrumentos cirúrgicos com um sentimento de dever cumprido, aguardando a oportunidade de parabenizar pessoalmente o cirurgião que viera de Lisboa de propósito naquela noite gelada de inverno para salvar aquela criança, aquele Menino Jesus! Revia-se na abnegação daquele maravilhoso ser humano que provavelmente também deixara a sua família de forma inesperada na Consoada. Quando o médico se voltou, retirando em simultâneo a máscara cirúrgica, os profundos olhos azuis de ambos fitaram-se, primeiro com estupefação e depois com uma emoção impossível de conter. Diana estava diante de um dos mais renomados especialistas mundiais em Cardiologia Pediátrica, mas só conseguiu balbuciar: – Pai?!
Abraçaram-se, emocionados perante aquele encontro tão feliz quanto imprevisto. Não era a noite de Natal que haviam planeado, mas foi aquela que lhes preencheu o vazio no coração que ambos sentiam.
Através da janela da sala onde confraternizavam com os outros profissionais de saúde podia ver-se agora uma estrela muito cintilante no céu enegrecido…
Pseudónimo: Clara Neves